sábado, 2 de julho de 2011

A Alma



É um termo vago, indeterminado, que expressa um princípio desconhecido, porém de efeitos conhecidos que sentimos em nós mesmos.
A palavra Alma corresponde à animu dos latinos, à palavra que usam todas as nações para expressar o que não compreendem mais que nós. No sentido próprio e literal do latim e das línguas que dele derivam, significa “o que anima”. Por isso se diz:
A Alma dos homens, dos animais e das plantas, para significar seu princípio de vegetação e de vida. Ao pronunciar esta palavra, só nos dá uma ideia confusa, como quando se diz no Génesis: “Deus soprou no rosto do homem um sopro de vida, e se converteu em alma vivente, a alma dos animais está no sangue, não mateis, pois, sua Alma.”

De modo que a alma em sentido geral se toma pela origem e causa da vida, pela vida mesma. Por isto as nações antigas acreditaram durante muito tempo que tudo morria ao morrer o corpo. Ainda é difícil desentranhar a verdade no caso das histórias remotas, há probabilidade que os egípcios tenham sido os primeiros que distinguiram a inteligência e a alma, e os gregos aprenderam com eles a distinção.
Os latinos, seguindo o exemplo dos gregos, distinguiram animus e anima; e nós distinguimos também alma e inteligência. Porém o que constitui o princípio de nossa vida, constitui o princípio de nossos pensamentos?
São duas coisas diferentes, ou formam um mesmo princípio? O que nos faz digerir, o que nos produz sensações e nos dá memória, se parece ao que é causa nos animais da digestão, das sensações e da memória?

Há aqui o eterno objecto das disputas dos homens.
Digo eterno objecto, porque carecendo da noção primitiva que nos guie neste exame, teremos que permanecer sempre encerrados num labirinto de dúvidas e de conjecturas.

Não contamos nem com um só apoio onde firmar o pé para chegar ao vago conhecimento do que nos faz viver e do que nos faz pensar. Para possuí-lo seria preciso ver como a vida e o pensamento entram em um corpo.
Sabe um pai como produz a seu filho?
Sabe a mãe como o concebe?
Pode alguém adivinhar como se agita, como se desperta e como dorme?
Sabem alguns como os membros obedecem a sua vontade? Terá descoberto o meio pelo qual as ideias se formam em seu cérebro e saem dele quando o deseja? Débeis autómatos, colocados pela mão invisível que nos governa no cenário do mundo, quem de nós poderia ver o fio que origina nossos movimentos?

Não nos atrevemos a questionar se a Alma inteligente é Espírito ou Matéria; se foi criada antes que nós, se sai do nada quando nascemos; se depois de haver nos animado no mundo, vive, quando nós morremos, na eternidade. Essas questões que parecem sublimes, só são questões de cegos que perguntam a cegos: que é a luz?

Quando tratamos de conhecer os elementos que encerra um pedaço de metal, o submetemos ao fogo em um crisol. Possuiríamos crisol para submeter a alma?
Uns dizem que é Espírito; porém, que é Espírito?
Ninguém sabe, é uma palavra tão vazia de sentido, que nos vemos obrigados a dizer que o espírito não se vê, porque não sabemos dizer o que é.
A alma é matéria, dizem outros. Porém, o que é matéria?
Só conhecemos algumas de suas aparências e algumas de suas propriedades; e nenhuma destas propriedades e aparências parece ter a menor relação com o pensamento.

Há também quem opine que a alma está formada de algo distinto da matéria. Porém que provas temos disso?
Se funda tal opinião em que a matéria é divisível e pode tomar diferentes aspectos, e o pensamento não. Porém, quem teria dito que os primeiros princípios da matéria sejam divisíveis e figuráveis?
É muito verossímil que não o sejam; seitas inteiras de filósofos sustentam que os elementos da matéria não têm forma nem extensão. O pensamento não é madeira, nem pedra, nem areia, nem metal, logo o pensamento não pode ser matéria. Mas esses são raciocínios débeis e atrevidos. A gravidade não é metal, nem areia, nem pedra, nem madeira; o movimento, a vegetação, a vida, não são nenhuma dessas coisas; e, sem dúvida, a vida, a vegetação, o movimento e a gravitação são qualidades da matéria.
Dizer que Deus não pode conseguir que a matéria pense, é dizer o absurdo mais insolente que se tenha proferido na escola da demência.
Não estamos certos de que Deus tenha feito isso; porém se que estamos certos de que poderia fazê-lo.
Que importa tudo o que se tenha dito e o que se dirá sobre a alma?
Que importa que a tenham chamado entelequia, quintessência, chama ou éter; que a tenham tomado por universal, incrida, transmigrante, etc., etc.?
Que importam em questões inacessíveis à razão, essas novelas criadas por nossas incertas imaginações?
Que importa que os pais da Igreja dos quatro primeiros séculos acreditassem que a alma era corporal?
Que importa que Tertuliano, contradizendo-se, decidisse que a alma é corporal, figurada e simples ao mesmo tempo? Teremos mil testemunhos de nossa ignorância, porém nem um só oferece vislumbre da verdade.

Voltaire

Sem comentários:

Enviar um comentário